Substituição tributária abusiva diante do sistema tributário
Quando se olha para o nosso sistema constitucional tributário não há como negar a sua extrema rigidez e complexidade, pelas estreitas balizas concebidas pelo constituinte para o exercício do poder de criar tributos pelo legislador de cada ente tributante.
Essa particularidade do nosso sistema tributário está assentada na tradicional premissa de que “todo aquele que detém poder tende a abusar dele e assim procederá enquanto não encontrar limites” (Montaigne). E são muitas as diretrizes, deliberadamente colocadas no texto constitucional, que funcionam como limites para o legislador tributário, no sentido de proteger direitos fundamentais do particular que estão relacionados com a sua liberdade e propriedade, direitos que são necessariamente afetados pela atividade da tributação exercida pelo poder público.
A despeito da existência desses estreitos limites constitucionais, ainda assim é costumeiro o abuso no poder de tributar, a ponto de distorcer toda a estrutura concebida para o sistema tributário brasileiro. Os exemplos são muitos, a ponto de revelarem a existência de verdadeiro divórcio entre as normas jurídicas vinculadas por hierarquia, na medida em que grande parte da legislação tributária hoje utilizada na arrecadação dos diferentes tributos não encontra sustentação nas rígidas diretrizes fincadas na Magna Carta. Ou seja, não há sintonia entre o que está na Constituição e o que se vê na prática diária da administração tributária.
Exemplo dessa distorção está na abusiva utilização do instituto da substituição tributária. Sim, ainda que inserida por meio de condenável remendo pelo constituinte derivado (EC nº 03/93), não se desconhece que há previsão constitucional autorizando que o poder legislativo possa aprovar lei que venha atribuir, ao sujeito passivo, a responsabilidade pelo pagamento de tributo “cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente” (§ 7º do art. 150), pavoroso comando que se procurou mascarar com o simbólico complemento de restar “assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido”.
Também não se desconhece que o instituto da substituição tributária foi declarado constitucional pela Suprema Corte. No entanto, essa convalidação não pode ser tomada como absoluta, como reconhece o próprio STF ao fincar diretriz, em julgamento sob o rito da conhecida repercussão geral prevista no art. 543-B do antigo CPC, pela necessária existência de duas normas jurídicas que precisam ser confrontadas para a tipificação de legítima substituição tributária: “a) a norma tributária impositiva, que estabelece a relação contributiva entre o contribuinte e o fisco; b) a norma de substituição tributária, que estabelece a relação de colaboração entre outra pessoa e o fisco, atribuindo-lhe o dever de recolher o tributo em lugar do contribuinte” (RE nº 603.191).
Confirmando as premissas colocadas no início dessa reflexão, o indicativo do STF vem complementado com a lúcida observação contida na ementa do referido julgado, no sentido de que “a validade do regime de substituição tributária depende de atenção a certos limites no que diz respeito a cada uma dessas relações jurídicas”, advertindo a Suprema Corte que “não se pode admitir que a substituição tributária resulte em transgressão às normas de competência tributária e ao princípio da capacidade contributiva, ofendendo os direitos do contribuinte, porquanto o contribuinte não é substituído no seu dever fundamental de pagar tributos” (RE nº 603.191).
Sábias lições compiladas da síntese contida na ementa do referido julgado, mas que merecem ser aprofundadas mediante a leitura da íntegra do voto da relatora, Ministra Ellen Gracie, pela clareza da exposição e firmeza nas irretocáveis conclusões. Merece destaque a advertência para que seja observada a razoabilidade e limites na instituição do dever de colaboração atribuído para terceiro, “posição de substituto que é chamado a colaborar com o fisco, não a contribuir para as despesas públicas”, como acertadamente consta do referido voto.
Embora não seja esse o espaço para aprofundamento do tema, em estudo anterior (Curso Avançado de Substituição Tributária – IOB 2010) já sustentamos que a técnica da substituição tributária tem limites e condições, sendo possível o manejo do instituto da substituição tributária de forma legítima, desde que cumpridos determinados pressupostos pelo legislador tributário, aqui relacionados a breve passo:
(1) a substituição pressuponha a colocação de terceiro (substituto) no polo passivo da relação jurídica tributária, no lugar do substituído que, necessariamente, deve ser o contribuinte;
(2) o substituto não pode ser alguém totalmente alheio à situação que constitui o fato gerador, mas necessariamente partícipe do fato;
(3) o substituto não pode arcar com o ônus econômico da obrigação que lhe é atribuída, devendo a regra jurídica da substituição prever mecanismo para que possa se ressarcir do encargo perante o contribuinte (substituído);
(4) a regra de incidência da substituição deve ser desenhada à luz das peculiaridades do substituído (contribuinte) para a quantificação do tributo, deslocando-se a obrigação assim mensurada para ser cumprida pelo substituto;
(5) substituto e substituído devem estar ao alcance do mesmo sujeito ativo, assim como da mesma entidade tributante competente.
Cumpridos esses pressupostos, estará legitimada a substituição tributária sem qualquer contestação, como acontece com a lei do imposto de renda que exige a tributação pela fonte pagadora dos rendimentos atribuídos pela pessoa jurídica aos seus beneficiários, na modalidade conhecida como retenção na fonte.
O mesmo não se pode dizer da disseminada substituição tributária intentada pelos Estados e pelo Distrito Federal no âmbito do ICMS, em que dificilmente é possível passar pelos cinco pressupostos anteriormente relacionados. Não bastasse isso, a pretendida concentração da exigência do ICMS num único sujeito passivo choca-se com a sua natureza de tributo de incidência plurifásica, moldado por rígidos limites constitucionais, dentre eles a garantia da não cumulatividade (CF, art. 155, º 2º, inciso I) para assegurar a distribuição do encargo tributário entre os vários intervenientes na cadeia de circulação, de forma proporcional ao valor acrescido em cada etapa.
É inegável que o instituto da substituição tributária facilita a arrecadação dos tributos e contribui para combater as práticas evasivas, como também reconhece o STF no mencionado pronunciamento. No entanto, não é suficiente invocar os benefícios da praticidade para validação constitucional de qualquer regime de substituição tributária que se pretenda implantar, ainda mais quando a abusiva pretensão do fisco também esbarra na deficiente construção da específica regra jurídica de incidência, que costuma ser deliberadamente apelidada de regra de “substituição tributária” na tentativa de legitimar o abuso.
É o que acontece, a título de exemplo, com a voracidade do fisco mineiro cuja legislação contempla dupla exigência de ICMS na importação de mercadorias: (i) no “desembaraço aduaneiro” (art. 6º, inciso I, da Lei (MG) nº 6.763/75), regra geral que tem amparo na alínea “a” do inciso IX do § 2º do art. 155 da Constituição Federal, situação em que o importador é colocando como sujeito passivo na condição de “contribuinte” (CTN, art. 121, parágrafo único, inciso I); e (ii) outra vez, agora “na condição de sujeito passivo por substituição, pelo pagamento do imposto devido nas operações subsequentes” (art. 16 do Anexo XV do RICMS-MG aprovado pelo Decreto nº 43.080/2002), segunda incidência que também é exigida no “momento do desembaraço aduaneiro ou da entrega da mercadoria, quando esta ocorrer antes do desembaraço”, nos termos do inciso II do mencionado art. 16 do Anexo XV do RICMS-MG.
Não é preciso maior esforço para qualificar o abuso da legislação mineira com todos os “is” imagináveis (irracional, ilegítimo, ilegal, inconstitucional e intolerável). Exige-se antecipadamente ICMS no pressuposto de saída futura, presumindo que a mercadoria importada será um dia revendida, mas não se sabe ainda quando e nem o seu destino, no Estado ou para fora do Estado, para consumidor, revendedor ou outro destinatário.
Ignora a legislação mineira a advertência do STF no sentido de que “não há substituição tributária sem que haja tributo devido pelo contribuinte” (substituído), reforçando que o substituto é mero colaborador do fisco na arrecadação de tributo devido por outro contribuinte (substituído) e não por ele próprio. Se o importador é colocado como substituto, quem será o substituído que tem o dever de ressarci-lo no momento do desembaraço aduaneiro?
A pergunta, sem possibilidade de resposta, demonstra que é descabida e precipitada a nova exigência, sob o apelido de “substituição tributária”, no mesmo momento da incidência do ICMS-Importação também devido no desembaraço do produto importado (entrada), pois ainda não está presente o outro sujeito (substituído) que deve ser partícipe do fato da futura operação que se pretende tributar.
Diante de tamanha a voracidade do fisco, sendo impossível incluir a abusiva substituição tributária mineira em qualquer das categorias adotadas pela doutrina (“para frente”, “para trás”), talvez lhe caiba o papel de inaugurar novo rótulo (“para cima”), como referencial de excessivo peso a massacrar o administrado que fica embaixo.
José Antonio Minatel
Mestre e Doutor em Direito Tributário pela PUC-São Paulo (SP); professor de Direito Tributário na Faculdade de Direito da PUC-Campinas (SP), nos cursos de graduação e pós-graduação (especialização em Direito Tributário); professor do IBET-Instituto Brasileiro de Estudos Tributários; ex-Delegado da Receita Federal em Campinas; ex-membro do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda em Brasília; autor do livro “Conteúdo do Conceito de Receita e Regime Jurídico para sua Tributação”, publicado pela MP Editora (SP), em 2005; vários artigos e capítulos de livros publicados sobre matéria tributária e processo administrativo tributário; advogado e consultor tributário. Endereço para acessar detalhamento deste Currículo: http://lattes.cnpq.br/5015200878218164.