Processo administrativo tributário é exigência constitucional. CARF não pode ser extinto.
Por conta dos desvios de condutas investigados no âmbito da operação Zelotes, é frequente o noticiário dando conta de inflamados pronunciamentos sugerindo a extinção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, manifestações por vezes provenientes de destacados opinantes, inclusive de integrantes da própria administração pública. Evidente que essas vozes revelam ponderações mais sentimentais que jurídicas, uma vez que despidas de qualquer reflexão de cunho constitucional, mas têm o louvável mérito de repudiar a corrupção, de abominar o reprovável “jeitinho” de criação de dificuldades para angariar facilidades, enfim, de condenar qualquer prática de desvio de conduta, principalmente daqueles investidos em função pública com a missão de assegurar o interesse e bem-estar da coletividade.
Devemos reconhecer que há uma nobre missão reservada ao CARF enquanto órgão estruturado, no âmbito do Poder Executivo, para dirimir conflitos entre fisco e contribuintes, cabendo-lhe revisar os atos praticados pelos agentes públicos com a finalidade de depurar a pretensão nele manifestada, afirmando o exato conteúdo e alcance da lei tributária aplicável em função dos fatos que são relatados em cada controvérsia submetida ao rito do processo administrativo tributário.
A manutenção de estrutura organizada para prática de atos de cunho administrativo, mas dotados de natureza processual e com reconhecida função judicante, não deve ser vista como simples opção do legislador ordinário que possa ser revogada a qualquer tempo e a seu talante. Tampouco essa estrutura se apresenta como uma benesse advinda de nossos governantes que possa ser cancelada a juízo de sua conveniência.
Pelo contrário, a manutenção de estrutura para dar conta do processo administrativo em cada esfera de poder é exigência prevista na Constituição Federal. Com efeito, ao elencar no rol dos direitos e garantias individuais o “direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder” (CF, art. 5º, inciso XXXIV, alínea “a”), está a Constituição Federal exigindo que os entes da Federação mantenham estrutura mínima organizada em cada área para assegurar “direito de resposta” aos pleitos que lhes são endereçados, como são as “reclamações e os recursos nos termos do processo tributário administrativo”, objeções que têm o efeito se suspender a exigibilidade da pretensão, nos termos do artigo 151, inciso III, do CTN.
Engana-se quem enxerga a garantia constitucional do “direito de petição” como satisfeita pelo simbólico ato que disponibiliza a aposição de carimbo de recebimento, ou “direito ao protocolo”, como de forma equivocada atuam muitas repartições públicas existentes no país. Direito de petição vai além do “direito ao protocolo”, exigindo pronta manifestação do Poder Público sobre a pretensão deduzida pelo administrado, apreciando-a no rito de estrutura que permita dar efetividade aos caros princípios constitucionais da “legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”, como prevê o art. 37 da Magna Carta.
Prevê o ordenamento jurídico, ainda, que “no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (CF, art. 5º, inciso LXXVIII), referência expressa ao processo administrativo que não pode ser considerada simbólica. Essa garantia vem reforçada por outra diretriz que também atribui dignidade constitucional ao processo administrativo, colocando-o mais uma vez no mesmo nível do processo judicial, ao estabelecer que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (CF, art. 5º, inciso LV).
Assegurar o “contraditório e ampla defesa”, também no processo administrativo, exige a manutenção de estrutura organizada com agentes públicos que estejam legitimados para prática de atos decisórios e não simplesmente homologatórios, necessariamente regidos pelos princípios da neutralidade, imparcialidade e independência, além da legalidade.
Ainda que essa independência possa ser alcançada com julgadores indicados por representação paritária, seria salutar a composição de específica carreira técnica para o exercício dessa função, mediante seleção de julgadores por meio concurso público, iniciativa que contribuiria para o rompimento com os desequilíbrios apresentados pela atual estrutura, em que o presidente do órgão, que tem a prerrogativa do voto duplo para desempate, até pouco tempo atrás era a autoridade que comandava o corpo de lançadores tributários, expedindo normas administrativas que, mesmo desbordando do alcance da lei, agora como julgador deveria colocar-se como impedido, pois não teria a independência e neutralidade para reavaliá-las.
Por outro lado, não satisfeita a Constituição em adjetivar a garantia ao exigir defesa “ampla”, a mensagem constitucional é complementada com o apelo para que seja disponibilizado aos litigantes não só todos “os meios” para a sua resistência, mas também todos os “recursos inerentes” aos atos de natureza decisória, locução que acena para a necessária existência de verdadeiro tribunal administrativo com atribuições de deliberação colegiada sobre esses “recursos”, mediante pronunciamento que tenha o efeito de ato final de revisão na órbita administrativa.
A despeito de as pretensões de cunho tributário formalizadas pela Fazenda Pública gozarem da presunção de legalidade, porque o agente público só pode fazer ou deixar de fazer o que está previsto na lei (ato vinculado), é preciso dizer que essa presunção é relativa e jamais poderá ser tomada como de caráter absoluto. Tanto isso é verdade que há expressa previsão no art. 145 do CTN assegurando a possibilidade de alterar o lançamento tributário por meio de resistência manifestada em “impugnação do sujeito passivo” (inciso I), e até mesmo mediante atos do próprio Poder Público por meio de “recurso de ofício” (inciso II) ou “iniciativa de ofício da autoridade administrativa” (inciso III), quando constatada qualquer desconformidade que desqualifique a pretensão formalizada pela Fazenda Pública.
Como se vê, está inserida no ordenamento jurídico a exigência de depuração dos atos da administração pública mediante revisão em estrutura interna especialmente organizada para esse fim. Essa exigência não colide, pelo contrário, convive em harmonia com o princípio constitucional que atribui ao Poder Judiciário o monopólio de dizer o direito com grau de definitividade, ao estabelecer que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (CF, art. 5º, inciso XXXV).
Portanto, pode e deve o CARF ser repensado na sua formatação, jamais ser extinto como órgão de julgamento administrativo, pois restou demonstrada a necessária manutenção de estrutura que permita a produção de atos decisórios, para solução dos conflitos tributários nos limites próprios da esfera administrativa. Para tanto, essa organização precisa ser estruturada com envergadura suficiente para que seus julgadores possam prolatar suas decisões, solucionando os conflitos tributários, inspirados e vinculados unicamente pelos princípios da neutralidade, imparcialidade, independência e legalidade, para que se possa alcançar a Justiça e preservar o Estado de Direito.
José Antonio Minatel
Mestre e Doutor em Direito Tributário pela PUC-São Paulo (SP); professor de Direito Tributário na Faculdade de Direito da PUC-Campinas (SP), nos cursos de graduação e pós-graduação (especialização em Direito Tributário); professor do IBET-Instituto Brasileiro de Estudos Tributários; ex-Delegado da Receita Federal em Campinas; ex-membro do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda em Brasília; autor do livro “Conteúdo do Conceito de Receita e Regime Jurídico para sua Tributação”, publicado pela MP Editora (SP), em 2005; vários artigos e capítulos de livros publicados sobre matéria tributária e processo administrativo tributário; advogado e consultor tributário. Endereço para acessar detalhamento deste Currículo: http://lattes.cnpq.br/5015200878218164.