Imposto de renda progressivo sobre o ganho de capital: Nova exigência possível só a partir de 2017
Nos encontros diários no meio acadêmico, proporcionados pela concomitante atividade de professor, costumo chamar a atenção dos alunos para o significado da expressão “legislador ordinário”, como sendo aquela utilizada no meio jurídico para fazer referência ao integrante do organismo credenciado para produzir as leis gerais (Poder Legislativo), ou seja, a expressão equivale ao legislador comum. A provocação tem o intuito deliberado de adverti-los para que não tomem o adjetivo “ordinário” com o sentido pejorativo que costuma fazer referência ao personagem de péssima qualidade, safado, grosseiro, mau caráter e até medíocre, como frequentemente o termo é utilizado no linguajar cotidiano.
Todavia, há momentos em que o sentido pejorativo de “ordinário” parece mais que apropriado para rotular o nosso legislador tributário, pela sua desfaçatez e descaramento na produção da lei. Faço referência à divulgação da recente Lei nº 13.259, de 2016, publicada em edição extra do Diário Oficial da União do dia 17 de março de 2016.
De pronto, registre-se que a iniciativa por duas edições do Diário Oficial da União em dia de expediente normal (quinta-feira) nada tem a ver com a mencionada Lei que foi ali inserida, sendo estratégia de cunho político – igualmente “ordinária” – que estava relacionada unicamente com a necessidade de rapidez na nomeação de ex-presidente da República para o cargo de Ministro de Estado, na estrutura do Poder Executivo.
Não é dessa esperteza política que pretendo tratar nessa breve reflexão. A mencionada Lei nº 13.259/2016 tratou de implementar a progressividade do imposto de renda na tributação do ganho de capital auferido por pessoas físicas, assim como pelas pequenas empresas integrantes do regime simplificado de tributação conhecido como Simples Nacional.
Ainda que se possa abominar a cômoda opção por aumento pontual de tributo, iniciativa que mais uma vez deixa de lado a reclamada reforma do complexo sistema tributário nacional, mais que necessária, há que se reconhecer o lado positivo da inovação legislativa. Com efeito, a novel Lei vem corrigir uma das anomalias da anterior sistemática de tributação isolada do ganho de capital, que era feita mediante alíquota fixa (15%), procedimento que se revelava conflitante com as diretrizes da generalidade, universalidade e progressividade estampadas no § 2º do art. 153 da Constituição Federal.
No entanto, ainda que se enalteça o mérito pela adoção da progressividade também para a tributação do ganho de capital, não se pode fechar os olhos para o lado atrevido do legislador ao finalizar a mencionada regra jurídica, ali fazendo constar expressamente que “Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, produzindo efeitos a partir de 1o de janeiro de 2016” (art. 5o).
Sem dúvida, ao fazer referência na parte final do art. 5º que a lei publicada em 17.03.2016 vai produzir “efeitos a partir de 1o de janeiro de 2016”, deixou ali o legislador suas impressões digitais que permitem logo identificá-lo com o adjetivo de “ordinário”, agora no sentido pejorativo de safado, atrevido, sem caráter, como alinhavado no início desse escrito, pelas evidentes agressões a princípios constitucionais que funcionam como verdadeiros pilares de sustentação da segurança jurídica e da certeza do direito.
Em primeiro lugar, salta aos olhos a frontal agressão ao princípio constitucional da irretroatividade da lei tributária, estampado no art. 150, inciso III, alínea “a” da Magna Carta, mediante a condenável tentativa de emplacar efeitos retroativos para a novel lei. É de sabença geral o requisito da previsibilidade, exigindo que as normas jurídicas sejam postas para regular as condutas futuras – e não as já ocorridas no passado –, com as necessárias ressalvas do ordenamento para as chamadas leis interpretativas e para a justificável retroatividade benigna (CTN, art. 106), esta última só admitida em matéria tributária no tocante à aplicação das penalidades. Em nenhuma dessas exceções pode ser enquadrada a inovação legislativa em comento.
Não bastasse a extravagante pretensão de regular o passado, o insubordinado legislador fez vistas grossas para outro princípio constitucional extremamente caro em matéria tributária. Refiro-me ao princípio da anterioridade em relação ao exercício financeiro, pelo qual o constituinte original vedou a exigência de tributos “no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou” (CF, art. 150, III, “b”).
Como se vê, o abuso legislativo é extravagante, pois além de não ser possível a sua aplicação retroativa, sua eficácia deverá ser postergada necessariamente para o exercício seguinte ao da sua publicação, pelo incontestável efeito de norma que vem majorar o imposto sobre a renda na tributação progressiva do ganho de capital. Assim, com essa dupla agressão a princípios constitucionais, parece incontestável que o pretensioso legislador pátrio faz por merecer o adjetivo “ordinário”, na sua acepção pejorativa anteriormente mencionada.
Nem se argumente que, por ser a nova Lei resultante do projeto de conversão da Medida Provisória nº 692, publicada no ano anterior em 22.09.2015, estaria respeitada a previsibilidade e afastada a surpresa, e com essa procedência poderia a questionada Lei nº 13.259/2016 produzir efeitos já a partir de 1º de janeiro de 2016. Essa construção também esbarra em expressa previsão contida na Constituição Federal, mais precisamente no § 2º do art. 62 que transmite mensagem cristalina ao determinar que “Medida Provisória que implique instituição ou majoração de impostos, exceto os previstos nos arts. 153, I, II, IV, V, e 154, II, só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se houver sido convertida em lei até o último dia daquele em que foi editada”. O imposto sobre a renda está previsto no inciso III do art. 153 e, assim, não está contemplado na exceção ali prevista.
Portanto, ainda que a literalidade do texto legal indique a pretensão de que a comentada Lei “… entra em vigor na data de sua publicação, produzindo efeitos a partir de 1o de janeiro de 2016” (art. 5o), é fora de dúvida que a majoração das alíquotas do imposto de renda, na tributação progressiva do ganho de capital, só poderá ser aplicada a partir de 1º de janeiro de 2017, pelos fundamentos constitucionais anteriormente destacados.
No entanto, essa certeza sobre a eficácia prospectiva da nova Lei não é suficiente para apaziguar todas as controvérsias relacionadas com esse tema de tributação progressiva do ganho de capital. Sabendo-se que a legislação do imposto de renda da pessoa física adota o chamado “regime de caixa”, merece pausada reflexão o adequado tratamento tributário a ser atribuído ao ganho, na hipótese de alienação de bem ou direito a prazo no ano de 2016, quando parte do recebimento do preço só vai ocorrer a partir do ano de 2017.
Ainda que não seja esse o espaço para o aprofundamento das possíveis variáveis sobre o tema, ouso afirmar que a apuração do ganho de capital – e também a incidência do imposto de renda – serão regidas pela lei vigente na data da celebração do negócio jurídico que exterioriza o ganho. Assim, na hipótese acima aventada, qualquer que seja o valor do ganho apurado, o imposto de renda será calculado pela alíquota fixa (15%) vigente em 2016, com o diferimento do pagamento do imposto assim calculado, incidente sobre o ganho proporcional ao valor das parcelas vincendas a partir de 2017.
Amenizando o tom “ordinário” que qualifica o legislador, conforta encontrar acenos da administração tributária marchando pelo acatamento da diretriz proposta, como se vê da recente conclusão exteriorizada na Solução de Consulta COSIT nº 12, de 12.02.2016, que, a despeito de não se referir à nova Lei aqui examinada, é intuitiva ao afirmar que para efeito do fato gerador do imposto de renda, “o ganho de capital havido na alienação de imóvel deve ser apurado no mês em que foi auferido, independentemente de ter sido percebida qualquer parcela do preço pago pelo comprador.”
Sem dúvida, um aceno positivo que serve como escudo para enfrentar as malvadezas!
José Antonio Minatel
Mestre e Doutor em Direito Tributário pela PUC-São Paulo (SP); professor de Direito Tributário na Faculdade de Direito da PUC-Campinas (SP), nos cursos de graduação e pós-graduação (especialização em Direito Tributário); professor do IBET-Instituto Brasileiro de Estudos Tributários; ex-Delegado da Receita Federal em Campinas; ex-membro do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda em Brasília; autor do livro “Conteúdo do Conceito de Receita e Regime Jurídico para sua Tributação”, publicado pela MP Editora (SP), em 2005; vários artigos e capítulos de livros publicados sobre matéria tributária e processo administrativo tributário; advogado e consultor tributário. Endereço para acessar detalhamento deste Currículo: http://lattes.cnpq.br/5015200878218164