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Acesso direto do fisco aos extratos bancários e comodidade da presunção do Art. 42 da lei n° 9.430/96.

Conforme amplamente divulgado, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento de quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI nºs  2386, 2390, 2397 e  2859), todas relatadas pelo Ministro Dias Toffoli que, a despeito de terem sido interpostas imediatamente após a publicação da Lei Complementar nº 105/2001, aguardaram por mais de quatorze anos para que a Suprema Corte se manifestasse sobre a compatibilidade constitucional da regra jurídica que facilita o procedimento para que a administração tributária tenha a acesso aos dados bancários de pessoas físicas e jurídicas.

Na mesma assentada, houve deliberação sobre o Recurso Extraordinário nº 601.314, anteriormente afetado ao rito da repercussão geral, que versava sobre o mesmo tema, ficando definido, pelo placar de 9 a 2, que a administração tributária tem livre acesso aos extratos bancários de qualquer pessoa (física ou jurídica), independentemente de autorização judicial, bastando que essa iniciativa esteja fundamentada em regular procedimento fiscal iniciado para verificação do cumprimento das obrigações tributárias.

Qual seria a garantia desse regular procedimento fiscal já instaurado? Ainda que durante os debates perante a Suprema Corte alguns ministros tenham se pronunciado sobre a existência de específico regramento administrativo que registra e controla o acesso do fisco aos dados bancários, a grande verdade é que esse procedimento está disciplinado em atos do Poder Executivo (Decreto nº 3.724/2001 e Decreto nº 4.489/2002) que, por se tratarem de regras jurídicas estabelecidas no plano infralegal, não se traduzem em instrumentos suficientes para transmitirem segurança jurídica aos administrados.

A propósito, mediante sucessivas alterações foi desvirtuado o procedimento inicialmente previsto no primeiro Decreto, assim como, pela pressão da classe representativa dos agentes do fisco federal, já foi extinto o  Mandado de Procedimento Fiscal (MPF) que ali estava previsto, não só como instrumento de controle interno das atividades dos agentes da fiscalização federal, mas, principalmente, como ato administrativo dotado de envergadura suficiente para atribuir condições de procedibilidade ao agente do fisco, nas matérias e limites ali circunscritos. Portanto, o MPF tinha natureza de ato administrativo vinculado e necessário, como condição imprescindível para a formalização de lançamento tributário nas hipóteses em que era exigido o mandado.

Fruto da facilidade com que se faz mudanças via Decreto, o instrumento de garantia contido na sua redação primitiva acabou sendo fragilizado, como se vê da substituição do mencionado mandado (MPF) pelo Termo de Distribuição de Procedimento Fiscal (TDPF), mudança que não significa mera troca de siglas. Com efeito, substituiu-se a ordem (mandado), que era expedida por autoridade hierarquicamente superior e investida de funções de gerência e comando, por um simples termo para registrar a distribuição de tarefas com a indicação do profissional que vai executá-las, suprimindo-se a formalidade do ato administrativo prévio (MPF) que dava validade ao lançamento tributário.

Ainda que pareça sutil essa mudança, é sintomática a nova postura costumeiramente adotada pela fiscalização. Encampando essa aparente liberdade na definição dos procedimentos e métodos a serem utilizados na execução dessas atividades, tornou-se rotina inserir, já no primeiro ato que marca o início do procedimento fiscal, a ordem de intimação para que o sujeito passivo fiscalizado indique as instituições financeiras com as quais opera, assim como para que apresente os extratos bancários contendo toda a movimentação financeira do período sob fiscalização.

É bem verdade que os novos recursos tecnológicos, somados ao ritmo infindável de criação de obrigações acessórias sempre a cargo dos sujeitos passivos, têm propiciado que a administração tributária opere com o conhecimento prévio de uma gama de informações sobre as atividades econômicas das pessoas físicas e jurídicas. Mesmo com esse conjunto de elementos materiais específicos que permitiriam uma investigação mais direta do grau de cumprimento das obrigações tributárias em cada atividade econômica exercida, a facilidade do acesso ao extrato bancário tem propiciado certo comodismo na definição do método a ser adotado em cada auditoria fiscal, conduta que se imagina seja expandida e generalizada pela confirmação da legalidade desse procedimento no recente julgamento perante o Supremo Tribunal Federal.

Não é preciso dizer que a intimação para apresentação dos extratos vem sempre acompanhada de ameaça de agravamento de penalidades, até mesmo com a advertência da possível configuração do crime de desacato. Basta a negativa do sujeito passivo, ou mesmo a sua inércia não atendendo essa específica intimação, para que a administração tributária determine a imediata Requisição de Movimentação Financeira – RMF, ainda que o referido Decreto nº 3.724/2001 continue exigindo a elaboração prévia de relatório circunstanciado em que “deverá constar a motivação da proposta de expedição da RMF, que demonstre, com precisão e clareza, tratar-se de situação enquadrada em hipótese de indispensabilidade prevista no artigo anterior, observado o princípio da razoabilidade.” (§ 6º do art. 4º)

A demonstração de “indispensabilidade” do acesso aos extratos é requisito costumeiramente minimizado pela fiscalização, certamente por conta da comodidade que a informação fornecida pela instituição financeira proporciona ao agente da fiscalização, invertendo os papéis no tocante ao ônus da prova.

Isto porque, sem os extratos bancários, seria ônus do fisco comprovar qualquer infração à legislação tributária, demonstrando que o sujeito passivo adotou conduta que tenha resultado na redução da base de cálculo do tributo sob fiscalização, prova imprescindível para a formalização do pertinente lançamento tributário. No entanto, com acesso direto aos extratos bancários essa tarefa fica facilitada pela inversão do dever de produzir a prova, passando o fisco a exigir da pessoa sob fiscalização que faça a prova da origem de cada depósito e de outros valores que ali aparecem registrados como crédito, cuja negativa dá ao fisco a comodidade para concluir que os valores não comprovados tipificam omissão de receita ou de rendimentos, com escora na presunção estampada no art. 42 da Lei nº 9.430/96 que tem a seguinte mensagem:

Art. 42. Caracterizam-se também omissão de receita ou de rendimento os valores creditados em conta de depósito ou de investimento mantida junto a instituição financeira, em relação aos quais o titular, pessoa física ou jurídica, regularmente intimado, não comprove, mediante documentação hábil e idônea, a origem dos recursos utilizados nessas operações.

A despeito de tratar-se de presunção legal relativa, não se pode ignorar a tendência cada vez maior de abolir a circulação e arquivo de papeis, documentos físicos que estão sendo gradativamente substituídos pela multiplicidade de registros eletrônicos. Por outro lado, na dinâmica das diferentes atividades empresariais, não parece razoável exigir que cada valor registrado no extrato como crédito tenha correspondência com específico documento de igual data e valor – como exige o fisco –, tampouco se pode presumir que a ausência dessa prova ensejaria considerar, de forma generalizada, que o valor não comprovado teria sempre natureza de receita que foi omitida.

A título de exemplo que desmente essa presunção, tenha-se presente as operações praticadas pelas empresas com atividade de factoring, em que a sua receita é quantificada só pelo valor do deságio (diferença entre o valor de face do título cedido e o desembolso feito pela empresa de factoring), e não pelo valor do crédito bancário registrado no recebimento do título de crédito negociado.

Portanto, definida pelo STF a possibilidade de acesso direto aos extratos bancários das pessoas físicas e jurídicas, é chegada a hora de refletir com maior profundidade sobre a utilização, cômoda e indiscriminada, da presunção legal construída pelo art. 42 da Lei nº 9.430/96, avaliando-se a sua (in)compatibilidade frente à rigidez que caracteriza o nosso sistema tributário.

Como convite a essa prévia reflexão, ainda que em cada depósito não comprovado se aproveite o fisco da comodidade da presunção legal para projetar a provável existência de “receita” omitida, nos termos da lei, não parece razoável que essa primeira conclusão presumida possa ser utilizada para, comodamente, projetar uma segunda presunção, qual seja, a de que a “receita” presumidamente omitida materializa, simultaneamente, o conteúdo do conceito de “renda” em igual valor. Os diferentes conceitos constitucionais pressupostos para “receita” e “renda” não se confundem, assim como não podem ser equiparados por meio de cômoda presunção legal.

José Antonio Minatel.

Mestre e Doutor em Direito Tributário pela PUC-São Paulo (SP); professor de Direito Tributário na Faculdade de Direito da PUC-Campinas (SP), nos cursos de graduação e pós-graduação (especialização em Direito Tributário); professor do IBET-Instituto Brasileiro de Estudos Tributários; ex-Delegado da Receita Federal em Campinas; ex-membro do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda em Brasília; autor do livro “Conteúdo do Conceito de Receita e Regime Jurídico para sua Tributação”, publicado pela MP Editora (SP), em 2005; vários artigos e capítulos de livros publicados sobre matéria tributária e processo administrativo tributário; advogado e consultor tributário. Endereço para acessar detalhamento deste Currículo: http://lattes.cnpq.br/5015200878218164.